quinta-feira, 19 de junho de 2008

Certas mentiras que contam por aí

- ...

Olhou para o lado. Ela queria. Eu também queria. Mas eu não queria ir embora ainda com o gosto dela. Mesmo fazendo tanto tempo que não ficávamos juntas.

Sai de cima dela, com um pequeno protesto de "Ah, fica" que mal foi ouvido, sendo abafado pelo telefone.

- Esse telefone não pára - resmungou ela.

- Alô? - atendi - Sim... Ta tudo certo... Mas e agora? ... Tem certeza?... Aqui? Pode ser... Mas.. Ok, tchau.

- Quem era?

- Era o Rogério. Ele disse que os caras do frete não vão conseguir levar tudo amanhã. Como falei para você ontem, as coisas da tia vão tudo para caridade - esse era seu grande desejo, muito antes de ficar doente ela já havia me falado isso - o que eu vou levar é só o meu quarto, que também não tem muita coisa. Queria pedir um favor para você.

- Pode pedir.

- Eles só vão poder pegar na terça-feira, você pode vir aqui pra casa recebê-los? Sabe como é, não queria deixar a chave por aí. O Rogério vai ficar com uma cópia, e na imobiliária vai ter outra. Ele disse que vão chegar aqui às 7:30, será que você tem como?

- Eu dou um jeito, não se preocupa. Será que eles fazem frete de pessoas também? Eles podiam me levar junto - novamente fazendo beicinho. Tratei de olhar para o lado. Não queria dar margem para.. para nada, na verdade. Desejá-la era a única coisa que eu havia feito nesse último mês. Após o término definitivo do namoro, tive vontade de ir correndo para a sua casa, acordá-la de madrugada e dizer...Não dizer nada. Não havia nada para lhe dizer, nunca teve. As coisas com a Patrícia nunca precisaram ser ditas. Bastava um olhar. E o que eu mais queria era poder olhá-la novamente, sem receio de ser mal interpretada. Ela sabia o que eu queria. Mas algo me dizia para não fazer nada, não queria provar novamente do seu gosto, do seu toque, pois sabia que a despedida seria muito mais dolorosa. Hoje, a única coisa que eu tinha, era a sua lembrança, de quando passávamos horas juntas, conversando, discutindo, brincando. Namorar ou somente ficar não era o nosso interesse principal, quer dizer, o meu nunca foi - eu sempre achei. O que nós gostávamos mesmo era da companhia uma da outra. Apenas estar juntas, mesmo sem fazer absolutamente nada, já era tudo.

Agora foi a vez do telefone dela tocar.

- Oi mãe, fala.. Não... Eu to bem, to na casa da.. do André.

André.. Esse foi meu codinome durante muito tempo. Depois que a mãe dela descobriu tudo e da pior maneira possível nunca mais pudemos nos ver como antes. Nossos encontros eram camuflados com festinhas do pijama com a turma. Na verdade a festinha em si existia, mas era só com nós duas, e pijama, era a última coisa que usávamos.

- Ta bom mãe, tchau. Ela ficou feliz que eu estou na casa do André. Tadinho dele. É usado e abusado - riu - Vou ligar pra ele e falar que eu estou "lá".

Na verdade André existe. É o nosso amigo que pode ser tudo, menos homem. Uma bixa dessas de cinema, quase dois metros de altura, faz academia há muitos anos, forte, robusto, tem o cabelo com o corte de "homenzinho", aquele mesmo, quadradinho. Quem passa por ele na rua chega a ter medo, pois seu tamanho intimida qualquer pessoa, mas basta ele abrir a boca e falar "Meninaaa, isso é tudo!" que não restam dúvidas de que ele é gay. Mas um gay muito macho. Assumiu para todo mundo, se vira em mil para trabalhar e ganhar dinheiro. E como ganha dinheiro. Publicitário bem sucedido. Foi por causa dele que me apaixonei pela carreira. Como nos conhecemos não vem ao caso, mas ele foi nosso padrinho. Sempre cuidou de nós. E se tornou o provável namorado da Patrícia. A mãe dela só tinha visto ele uma vez, enquanto passávamos de carro pelo centro. Achou ele "Um filezão. Esse eu queria como genro Patrícia!", foi o seu comentário. Nós sentadas no banco de trás, riamos muito, e se tornava mais engraçado ainda pois todos da cidadezinha, que insisto em dizer, cidadeZINHA, sabiam do seu "passado obscuro", mas esses "dizem por aí" ainda não haviam chegado aos ouvidos da Dona Amélia, mulher de 3 filhos, casada há 40 anos, que achava que sua filhinha mais velha tinha um namorado "filezão". Ainda não acredito como ela nunca quis que a Pati o apresentasse para ela. Segundo a própria, ele é tímido, ainda não oficializamos o namoro, não podemos assustar o menino. Admiro-me ainda que Amélia sempre permitia ela dormir na casa do tal namorado. Talvez porque só depois dos quase 20 que sua filha arranjou um homem para ela. "Moça de família não pode ficar solteira para sempre, vão começar a falar por aí, até parece que você não gosta homens". E lá vinha a Patrícia explicar para a mãe que não tinha homem que prestasse nessa cidade, outrora falava que estava ficando com o Paulo, o José, o Ricardo (aliás, esse fui eu que inventei), o Pedrinho, mas que nenhum era bom o suficiente para ela. Aí a Dona Amélia sossegava. Até passar mais alguns meses sem um comentário sobre homens da parte da Patrícia, então começavam mais histórias, de que ela pegou o Zé Carlos com outra, que estava tudo acabado, que o Marquinho viajou para os EUA, que ela estava gostando muito de um certo rapaz lá da turma, e eu, sua fiel companheira ainda concluía "Esse a senhora vai gostar, é parecido com o Raí". Dona Amélia tinha uma paixão secreta pelo jogador Raí. Então, seus olhos brilhavam de orgulho da filhinha que "ta virando gente, às vezes parece bicho do mato que nunca sai de casa. Só quer saber de ir jogar futebol, coisa de homem. Ainda bem que você existe filha - referindo-se a mim - pelo menos ela ainda vai à sua casa estudar". Mal sabia a pobre Dona Amélia que sua filhinha já não era mais uma criancinha há muito tempo. E que eu, definitivamente, não era a melhor companhia pra ela.

- Dé.. Tenho que pedir aquele favorzinho de sempre para você... O que? Ta ocupado.. Sei, seu safado! Depois me conta.. Ah Dé!! Dé!! Cachorro, desligou na minha cara. Ele ta com o Beto lá. Eles ainda vão casar.

- Mas eles não tinham terminado?

- Terminaram ué. Desde quando precisa estar namorando para se fazer certas coisas - e sorriu para mim. Confesso que fiquei sem graça. Ela era a única que me conhecia e que conseguia me deixar sem graça. Única que conseguia me atingir de verdade, nem Ela conseguia isso.

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