domingo, 3 de maio de 2009

O copo que se quebrara

Tudo começara quando cheguei à cidade. Meus pais eram ambientalistas. Meu pai na verdade, José era seu nome. Ele acreditava na natureza. Ela por si só, sozinha, a criadora de tudo, a base pra todos, o cenário único e verdadeiro do mundo. Minha mãe estava se formando-se em jornalismo, mas também acreditava num mundo melhor. Eu tinha mais ou menos 5 anos. Ainda muito pequena não tinha noção do mundo à minha volta. Percebia que algo estava acontecendo, e não era bom. Muitos anos depois descobri o que aconteceu.
José era um dos presidentes de uma ONG que criaram para proteger as matas da região onde morávamos. Mas os proprietários de terra não eram de acordo, pois tinham inúmeras madeireiras clandestinas espalhadas pelo Estado, principalmente concentradas onde a ONG trabalhava. Meu pai já havia recebido inúmeras ameaças de morte, mas quanto mais passava o tempo, mais ele achava que podia melhorar o mundo e mais empolgado ele ficava ao conseguir documentos e provas, para juntamente com o governo dar um fim naquilo tudo. Porém se deu conta tarde de mais que os principais donos de terra não estavam para brincadeira, e que iriam fazer o que fosse preciso para acabar com a ONG dele. Tentamos fugir para a praia, para a casa de um amigo dele, o Rogério. Ele também fazia parte da ONG, foram os dois que iniciaram o que seria a maior ONG da região na época e que ainda hoje continuava a lutar pela natureza. Em uma semana em que ficamos na casa de Rogério, que era um advogado recém saído das fraldas, as ameaças desapareceram. Pelo menos eu não acordava mais a noite ouvindo o telefone tocar, e minha mãe ir à cozinha buscar um copo de açúcar para meu pai. Muitas vezes era eu quem ia buscar esse copo, mas não entendia o que se passava. Minha mãe sempre me dizia que uma hora eu ia ficar sabendo do que se tratavam os tais telefones que insistiam em acordar todo mundo no meio da madrugada. Foi numa noite de lua cheia, que a profecia que tanto rogava os tais telefones aconteceu.
Meu pai chegou em casa mais nervoso do que o normal, mal havia entrado e já me convidou para sairmos e darmos uma volta. Fomos para a beira da praia, ele me mostrou a lua. Ela estava absolutamente linda, dava a impressão de que ela era maior do que eu. E que se esticássemos o braço, poderíamos tocá-la. Ele me falou muitas coisas que muito tempo depois eu fui entender. Ele disse que eu e a minha mãe Luli éramos as pessoas que ele mais amava na vida, mas que para nós podermos viver melhor ele precisava sacrificar certas coisas. E ainda sem eu entender ele disse que se algum dia quisessem tirar os meus sonhos de mim era para eu ser forte e nunca deixar que os tirassem. Que era para lutar até o fim pelas coisas que eu acreditava, se elas fossem corretas e do bem. Que poderíamos perder muitas coisas e sofrer, mas que se fosse um sonho de verdade e importante para mim, valeria a pena lutar sem desistir. Talvez ele soubesse que naquela noite seria assassinado. Provavelmente as ligações passaram a ser visitas pessoais. Como eles haviam descoberto onde estávamos morando, eu não sei. Mas lembro que quando chegamos em casa, pouco tempo depois a campainha tocara. Vi meu pai sair e nunca mais ele voltou. Ficamos sabendo da sua morte ainda de noite. Pensei que fossem aqueles telefonemas de sempre, e já fui para a cozinha buscar um copo de água com açúcar. Quando cheguei na sala onde o telefone se encontrava, minha mãe estava chorando desolada. Dessa vez o copo que eu preparara com água e açúcar fora para ela. Meu pai já não podia mais bebê-lo.
Rogério estava em outra cidade em uma reunião da ONG, logo que ficou sabendo veio nos ajudar. Minha mãe sabia que a próxima ia ser ela e me mandou para a casa da minha tia Med, que ficava em outra cidade, longe da praia. Minha tia nunca quis me aceitar morando lá. Culpava a minha mãe pela morte do seu irmão. Ela nunca quis que meu pai se casasse com a minha mãe, porque os dois acreditavam no quase impossível. Nunca mais vi minha mãe. Rogério que também se mudara para a mesma cidade que eu, de vez em quando me dava notícias sobre ela. Ela estava escondida junto com o resto do pessoal da ONG em uma outra cidade. Ela morrera poucos meses depois da morte do meu pai. Dizem que as pessoas podem morrer de tristeza. Acredito que para ela não havia mais motivo para viver sabendo que o grande amor da sua vida já havia indo embora para nunca mais voltar.

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