quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Se

Estávamos deitadas de barriga pra cima. Já era setembro, algumas provas em vista e uma bela tarde de sol. Um sábado. Uma pizza requentada. Uma cama. Nós duas.
- O que a gente vai fazer hoje?
- Não sei, o que você quer fazer?
- Nada, é bom ficar assim deitada depois de comer.
- Você é uma bela de uma velha que só pensar em dormir.
- Tem coisa melhor pra se fazer?
- E a Jéssica?
- O que tem ela?
- Ela não vem?
- Nesse final de semana não.
- Por quê?
- Porque eu precisava estudar, tenho um trabalho super gigante pra fazer.
- E porque você não está fazendo?
- Porque eu to aqui com você - sorriu. Senti com o canto do olho que ela olhava para cima curtindo aquele momento.
- Mas a gente não ta fazendo nada.
- Eu sei. E por isso que é bom!
Escorei minha cabeça com a mão deitando-me de lado ficando de frente para ela.
Deixei escapar um olhar de relance sobre seu corpo tão perto de mim. Agora ela sorria mais, talvez por sentir todo meu olhar sobre ela. Talvez até satisfeita.
- E a Marta?
- Pois é, perdi.
- Perdeu mesmo um mulherão!
- Engraçado que você não parecia querer que eu ficasse com ela, nem ontem, nem nas outras vezes.
- Eu não tenho nada o que querer ou não querer.
- Não tem.
- Não tenho.
- Mas fala.
Ela tentou esconder seu sorriso virando-se para mim.
- Não posso falar?
- Pode.
- Hmm - continuava sorrindo. Cada vez que sorria, ou se mexia, encostava-se em mim, até assim permanecer - bom saber.
Eu sorri de volta. Permanecemos assim sem falar absolutamente nada, apenas sorrindo. Olho no olho. Não havíamos mais tocado no assunto do nosso quase-beijo. Em nenhum dos tantos que não aconteceram pra falar a verdade. Talvez por nunca terem saído do projeto. Mas eu havia tentado ao menos uma vez fazer daquele quase beijo algo real. E era como se nada tivesse feito, afinal continuava no zero a zero.
- Mas a Carol ta se dando bem agora, fico feliz por ela.
- Eu também fico.
- Você acha que elas não voltam?
- Não sei, mas tomara que não né? - olhava de vez em quando nos meus olhos, de vez em quando pra minha boca. Começava a ficar nervosa com aquela situação.
- Por quê? - não conseguia conter aquele sorriso no canto da boca.
- Porque eu quero que a minha amiga seja feliz.
- Mas a Má não é tua amiga também?
- Sim, quero que as duas sejam felizes.
- Mas você acha que elas separadas serão mais felizes do que juntas?
- Tenho certeza absoluta. Sabe fico pensando - agora fora a sua vez de virar-se para mim por completo - às vezes fico viajando...
- Sobre?
- Ah, às vezes penso que tem certas pessoas que não nasceram pra ficar juntas?
- Você acredita no destino? - ri.
- Não besta, não to falando disso. To falando de coisas além de qualquer história que inventem pra dar desculpas sobre amores que não dão certo. To falando que existem pessoas que se dão tão bem como amigas que se um dia virarem namoradas é provável que não dêem certo.
Tentei fazer de conta que aquilo não poderia ser uma indireta.
- Mas elas eram amigas antes?
- Até onde eu sei mais ou menos.
Ri de sua incerteza.
- Mas sei lá. Às vezes a gente confunde amor com amizade, o fato de você se dar super bem com uma pessoa, ter várias coisas em comum, às vezes mais até do que você esperava quando conhece a pessoa, e por isso acha que pode namorar. Aliás, pode não, deve.
- Interessante essa tua teoria, é isso que você aprende na escolinha?
- Não - riu me empurrando - não é isso que eu aprendo na escolinha, é isso que eu vejo acontecer.
- Hmm.
Ela revirou os olhos.
- Eu já encontrei uma pessoa que parecia ter saído da mesma forma que eu, gostávamos das mesmas músicas, lugares, cores, roupas, livros, textos, momentos, tudo era compartilhado e mútuo.
- E aí?
- E aí que não deu certo, obviamente.
- A é? Mas justamente por ter tantas coisas em comum é mais fácil de lidar com a pessoa, não?
- Não, eu gosto quando as pessoas são diferentes de mim.
- É, eu também gosto.
- Pois então, como você pode namorar alguém tão parecido com você? Você nunca vai ter uma surpresa, porque tudo que vocês fazem já é premeditado, pois vocês compartilham os mesmos gostos.
- Continuo achando interessante - sorri.
- É interessante sim - sorriu de volta.
Trocamos um longo olhar sem dizer nada. Seus olhos fecharam e abriram com calma, muito devagar, como se soubesse que eu os cuidava com toda atenção.
- Sabe, eu prezo muito meus amigos.
- Eu continuo concordando - sorri tentando novamente não encarar aquilo como indireta.
- Você não acha que pode estragar uma amizade ficando com uma amiga?
- Acho que vai depender do que você sente e do que ela sente. Do valor que você dá pra amizade e da maneira como você vê ficar com a pessoa.
Sorriu concordando com a cabeça.
- Mas você já ficou com suas amigas né?!
- Já.
- E nunca estragou a amizade?
- Até onde eu sei não.
- Você já ficou com a Déia né?!
- Como você sabe disso?
- Os boatos rolam por aí. Mas vocês continuam amigas né?!
- Sim, muito amigas. O fato de eu ter ficado com ela parece que passou batido na nossa amizade, e é disso que eu falo. Depende da maneira como você vê essa amiga, e a amizade.
- Mas com a Renata também foi assim?
- Não sei, com a Renata por incrível que pareça as coisas são mais complicadas.
- Pois é, esse sempre foi meu medo de ficar com alguma amiga minha.
Esperei que dessa vez isso fosse uma indireta.
Ela se calou me olhando e com aquele sorrisinho quase imperceptível. Me deu vontade de lhe dar um beijo e tocar um dane-se pra tudo. Dessa vez eu ia ficar em silêncio para ver até aonde seu olhar e aquele sorriso iriam.
Ela por sua vez pareceu ter a mesma ideia que eu. Ficamos assim um longo período em silêncio apenas nos olhando nos olhos. E era difícil mantê-los parados, fixos numa única posição. Queria olhar para ela toda, sua boca, seu sorriso. Mas sentia com os olhos seu sorriso. Sentia na minha perna a sua encostando em mim. Ela olhou para o lado, ainda com seu rosto virado pra mim. Depois calmamente voltou-se de barriga para cima. Sempre acompanhada daquele sorriso. Pousou suas mãos por cima de sua barriga e assim ficou.
Continuei olhando-a, agora vencida pela sua beleza, pela sua boca, pelo seu corpo.
Ela sabia que eu estava assim, olhando-a mesmo. E ela continuava sorrindo, sem falar nada, apenas sorrindo. Um sorriso diferente de todos os sorrisos que eu já vira. Era um sorriso que eu conseguia sentir o gosto. Do que exatamente eu não sei, mas sentia. E ao mesmo tempo que ele me dizia tantas coisas, ele era enigmático. Como se estivesse a minha espera para desvendá-lo. Me convidando, me provocando.
Foi a minha vez de novamente me deitar de barriga pra cima. Inevitavelmente nossas pernas se tocaram, e assim permaneceram. Eu não conseguia esconder aquilo tudo que eu estava sentindo apenas pelo seu sorriso. Nunca tinha imaginado que o seu silêncio pudesse me fazer tão bem. E aquele sorrisinho no canto da boca.
Quando me dei conta eu estava sorrindo ainda, com muito menos timidez que outrora, chegava até a mostrar os dentes. Senti com o olho que ela virara para mim. Olhei para ela na hora em que abrira a boca para falar alguma coisa. Mas parou, com a boca semi-aberta. Olhou profundamente para minha boca. Sorriu. Olhou pra meus olhos. Continuou a sorrir. Para a minha boca. Eu sorri. Para os seus olhos.
Assim ficamos pelo resto da noite. Naquele momento percebi que nada além de olhos e sorrisos importava.