quinta-feira, 25 de junho de 2009

Violência gratuita, III

Quando acordei, o pacto feito em silêncio por nós duas foi quebrado por mim. Passei domingo inteiro refletindo sobre a noite anterior. Sobre a falta de segurança dessa cidade gigantesca. O fato das pessoas estarem se prendendo dentro de casa para os ladrões ficarem livres e impunes nas ruas. Era isso que acontecia. Nós, seres do bem, deixávamos de lado nossa liberdade, nosso direito de ir e vir para que os ladrões se apoderassem dele e fizessem o que bem entendessem com quem ainda insistia em andar a noite por aí.
A gente poderia ter sido assaltadas, pensei pela milésima vez. Eu poderia agora estar chorando no enterro de Yumi. E se aquilo fosse uma arma. Tinha formato de cano, talvez pudesse realmente ser uma arma. E se ele tivesse atirado quando Yumi arrancou o carro? Estaria eu agora chorando pela morte de Dani, uma das meninas mais interessantes que já havia conhecido desde que viera pra cá. Essa cidade-inferno, praguejei com medo.
Até eu poderia não estar mais aqui agora, pois poderíamos ter escapado da possível arma, mas ter sofrido um acidente de carro quando passamos no sinal vermelho a toda, e andamos em uma ruazinha a quase 80 por hora. E o que vai se dizer disso? Yumi fez errado de acelerar e não deixar que o cara abrisse o vidro e nos assaltasse? Então era assim que era pra sermos, pessoas vulneráveis que não reagem. Aposto que se tivesse acontecido alguma coisa conosco, falariam que deveríamos ter deixado ele levar tudo que quisesse. Mas como conseguimos escapar ilesas, somos imprudentes em sair assim com o carro.
Na verdade agora eu conseguia admirar Yumi mais ainda. Ela teve coragem. Enquanto eu pulava de susto, ela foi perspicaz e acelerou o carro. A chave estava na ignição. O carro não estava desligado, estava pronto para fugirmos. Talvez exista um cara lá de cima mesmo, pensei mais consolada. Ele que fez ela não desligar o carro. Nessas horas de pavor nos apegamos a qualquer possível manifestação de algo superior a nós. Então que eu me apegasse ao cara lá de cima. Sim, naquele momento estava agradecendo ao cara lá de cima por ter nos deixado escapar ilesas.
E se no fim tudo fosse uma brincadeira de mal gosto, e realmente fosse um canivete do Supercau? Estaríamos nós chorando, com medo, apavoradas e assustadas por um canivete de 1 cm?
Mesmo assim, ainda não me contentava o fato de que não podemos mais andar na rua tranquilas. Temos que ficar nos cuidando, olhando para todos os lados.
Agora, sozinha naquele quarto que estranhamente se tornara grande, fiquei com medo. Agora que toda a confusão passou pensei com mais cautela em tudo que aconteceu. E se aquele Giovani viesse brigar comigo ou batesse na Déia? Yumi estava dentro do carro nos esperando, talvez o cara lá de cima fez ela querer ficar dentro do carro justamente para que eu e Déia pudéssemos sair do apartamento dele mais rápido, para que no fim não desse tempo de Giovani nos acalçar. Que o cara lá de cima tenha colocado uma pedra no caminho de Giovani, literalmente uma pedra do meio do caminho, que descalço fez ele não conseguir correr com velocidade. É, começo a acreditar que talvez eu não estivesse tão sozinha no mundo assim como parecia. Talvez minha família estivesse me olhando lá de cima. Foi meu pai que me impulsionou para que fosse atrás de Déia e que não deixasse ela sozinha com aquele cafajeste do Giovani. Ele podia ter abusado dela e nunca ninguém ia saber.
Fazia poucos minutos que havia desligado o telefone. Falei por mais de duas hora com Déia. Ela me disse que Giovani levou-a a força para o seu apartamento. Eu disse que ela podia dar queixa a polícia, pois não havia acontecido só isto. Mas ela alegou que iria dizer o que? Que estava completamente bêbada e chapada? A razão poderia não estar com o Giovani, mas não estaria com ela também. Ela me prometeu que nunca mais faria isso, de ir para casa de outras pessoas que ela não conhecia muito bem. Ainda ecoava na minha cabeça o que Déia havia me contado.
- Ele arrancou minha camiseta, começou a me beijar toda. Tava com nojo - falou em meio a soluços - que nojo daquele cara. Tentou tirar minha calça, quando empurrei ele, ele me deu um tapa na cara. Vocês chegaram mais ou menos nessa hora. Nossa.. Manu não tenho como te agradecer por ter sido tão linda comigo. Nunca tive uma amiga assim.. Muito obrigada mesmo.
Talvez o Giovani poderia ter partido pra cima de mim e ter me espancado alí na frente de Déia, e ela não poderia fazer absolutamente nada para me ajudar. Giovani era mais baixo que eu, porém ainda assim era homem. Seu braço dava dois dos meus.
Cheguei a sonhar com a tatuagem que ele tinha no braço direito. Na verdade era um grande pesadelo.
Mas foi assim que passou meu domingo, mais parecido com um pesadelo do que com outra coisa. O quase beijo de Yumi e eu desaparecera da minha lembrança, dera lugar para todo aquele horror, aquela violência gratuita. Dormi muito mal a noite, acordei várias vezes sonhando com gritos de Déia. Às 5h da manhã desisti de dormir. Fiquei acordada o resto da noite até os primeiros raios de sol aparecerem por entre os vidros da minha janela anunciando que um novo dia chegara. Talvez um novo começo pra todos nós. Pelo menos foi assim que desejei.

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