quinta-feira, 16 de julho de 2009

Borboletas

Saiu sem olhar para trás. Fiquei parada. Eu vi Patrícia sair. Eu acompanhei cada movimento que ela fez indo para longe. E eu não fiz nada. Talvez fosse porque chegada a hora de finalmente eu agir como alguém que se importava com ela, como alguém que ama de verdade, como alguém que não fosse egoísta. Então eu precisava sair de mim mesma, se assim fosse o necessário. Mas eu não queria. Eu queria ir correndo atrás de Patrícia e falar, falar não sei o que, mas falar. Dizer tanta coisa. Mas só por falar não adiantaria nada, não faria voltarmos ao passado e consertar tudo que fora se quebrando durante todos esses anos. Não faria eu me tornar uma pessoa melhor. No fim eu era uma idiota, com todos meus encontros e desencontros. No fim eu era a criança, que por mais que ouvisse que era perigoso, eu ia até o fim pra saber como as coisas eram. Mas com Patrícia sempre fora diferente. Com Patrícia eu não sabia onde era o início, nem o fim. Até porque numa dada hora, e a partir de então, sempre achei que ela fosse pra sempre, que o fim era só mera coincidência da vida. Mas que o fim nunca seria nosso, só dos outros. E isso aconteceu quando a vi pela primeira vez, da janela jogando futebol com os meninos na rua. Lá, mesmo sem querer, mesmo até sem saber, eu já sabia. No fundo eu sempre soube. Era ela. Mas todos meus anos de inexperiência, todos meus anos de criancice fizeram com que eu colocasse tudo fora. Passo a passo fora.
Talvez minha maturidade se demonstrasse pelo fato de eu não ter ido correndo atrás dela pedindo sei lá o que. Desculpas, perdão, qualquer coisa.
Ainda conseguia vê-la caminhando para longe, conseguia ver seus cabelos balançando timidamente pra longe de mim. Lembrei que com ela nada que eu me propunha fazer funcionava. Ter autonomia, ser extravagante, ir atrás do que eu queria de verdade, mesmo sempre tendo sido eu que tomava a iniciativa. Talvez minha maturidade deveria me permitir, ou me forçar, a ficar parada ali deixando-a finalmente ir. Ir sem mim, mas ir. Afinal eu já tinha ido há muito tempo, mesmo achando que não. Ou talvez eu estivesse em stand by esperando-a para que um dia ela viesse comigo. Mas eu não era tão matura assim. Nunca fui. Porque deveria ser naquele momento? Deixar que a pessoa que eu mais amei na minha vida (e amei no passado, porque era do passado que a gente tinha vivido) simplesmente ir embora sem saber de tudo que eu sentia, tendo apenas minhas atitudes que sempre foram tão adversas ao meu coração. Então que eu fosse criança de novo, pela última vez, mas que fosse por uma boa razão, que fosse para fazer o bem.
E sem pensar em mais nada, fui a sua direção. Fui decidida como nunca fora com ela. Fui com a certeza de que enfim não estava fazendo a coisa errada. Fui. Ela entrara no corredorzinho que dava para a saída. Entrei nele também. Com o coração batendo forte, com aquela incerteza da primeira vez. Com aquele medo, sim eu estava com medo. O medo do desconhecido, o medo da pessoa que a gente gosta, aquele nervosismo de dar borboletas na barriga.
- Manuela, desde quando você ta aqui? - ouvi uma voz de uma mulher que não me era estranha.
Me virei lentamente, porque assim como não era estranha, sabia que não era boa. Era a mãe de Patrícia. Depois de tantos anos, enfim voltara a vê-la nos olhos.
- Oi, tudo bem com a senhora? - falei no tom mais próximo que eu conseguia falar de calma. Vi que Patrícia se virara rapidamente.
- Tudo, o que você faz aqui? - e por mais incrível que parecesse ela veio em minha direção para me cumprimentar, para dar um abraço. Senti no seu abraço algo que nunca havia sentido. Não senti nada. Pela primeira vez depois que ela soube que eu ficava com a sua filha, não senti seu olhar maquiavélico sobre mim, seu ódio, sua fúria, sua incompreensão. Não, definitivamente ela não deixara de ser homofóbica, mas vi em seus olhos que enfim ela não me via mais como uma pessoa que namorava a sua filha. Talvez por achar que eu era a sua doença, e como não estávamos mais juntas, sua filha enfim estava curada. Podia ser. Senti o corpo de Patrícia perto do meu, ela se botara na defensiva. Me senti estranhamente defendida por Patrícia. Ela se parara ao meu lado em silêncio, acompanhando cada gesto, cada palavra que sua mãe dizia, sempre esperando que em algum momento ela se voltaria para mim com raiva, que ela me trataria mal, e então ela novamente brigaria com sua mãe.
- Eu fiquei com saudade de casa - falei sincera.
- Você deve ta muito bem por lá - via que cada tom de sua fala era medida, era friamente calculada. Percebi uma força para me tratar bem - fico feliz, depois que você foi a minha Patrícia estuda que nem uma louca, e agora nem acredito - esfregou os olhos - ela vai pro exterior estudar.
Não consegui dizer nada, apenas sorri.
- Agora que ela já parou com as besteiras - e me olhou bem fundo - que ela fazia, agora que ela se encontrou novamente, ta centrada nas coisas certas da vida, no caminho de Deus, no caminho do bem, agora tudo vai dar certo. Espero que você também tenha achado o seu caminho minha filha. Ninguém está imune a erros, mas que bom que Deus nos dá tempo para refazê-los de melhor maneira né?! Como você está?
Nesse momento senti algo que só a gente podia sentir. Eu podia estar olhando nos olhos de sua mãe, mas sentia todo o ser de Patrícia junto comigo naquele instante. Ela estava comigo, por mais que não disséssemos uma palavra se quer. Ela fez menção de falar, mas eu involuntariamente segurei sua mão, impedindo-a de falar. Fiz que não com o canto do olho pra ela. Ela entendeu. Ela podia me odiar, ela podia nunca mais querer me ver na sua frente, mas ela já fora minha namorada, e ela sabia que nada do que tivemos fora um erro. E ela assim como eu também se indignava com os papos da sua mãe. Assim como eu, ela acreditava e acreditou muito tempo na gente, não dando a mínima para o que ela falava. Foi assim que nos fortalecemos por tanto tempo. Mas vi que naquele momento não adiantaria brigar com a sua mãe. Deixasse as duas felizes, naquela falsa certeza de que Patrícia havia se des-homossexualizado.
- Continuo a mesma, estudando e trabalhando muito - conclui.
Ela fingiu muito mal que não entendeu o "continuo", sorriu novamente. Neste momento o pai de Patrícia aparecera ao seu lado.
- Oh minha filha, quanto tempo - disse me abraçando. Ele nunca soube de nós duas. A mãe dela disse que era muita decepção pra um pai como ele.
- Que bom que você veio para a despedida da Pati - disse ainda com o seu braço envolta do meu ombro - como você ta?
- To bem, estudando bastante, trabalhando bastante, essas coisas - sorri completamente sem graça. A face da mãe de Patrícia estava fechada, sempre dizia que eu era a desgraça da vida da família dela, pobre coitado do pai que não sabia, porque se soubesse...
- Que lindo minha filha - disse dessa vez me soltando e indo para o lado de dona Amélia - vem almoçar com a gente amanhã? Não, melhor, vem dormir lá em casa hoje. Acho que vocês duas devem ter um monte de coisas para conversarem né? Nunca mais vi Patrícia falar de você.
Nesse momento me contive para não rir. Coitado mesmo, ele era o único que não sabia de nada. Foi engraçado no fim aquela cena. A mãe de Patrícia assumira uma cor rosa fúcsia para violeta, quase me fuzilando com os olhos, como se eu tivesse culpa da inocência do seu marido. Patrícia olhara para os seus pés branca, vi que congelara. E eu, bom eu fiquei olhando aquela situação incrédula.
Quase ao mesmo tempo as três falaram:
- Não querido, a Pati precisa de tempo para arrumar suas coisas, a mala dela ainda nem está pronta, nossa casa ta uma bagunça.
- Não pai, acho que a Manuela deve estar cansada, quer mais é deitar na cama dela, nem tem lugar pra ela dormir lá em casa.
- Não tio, não quero incomodar ninguém, a Pati de certo não arrumou suas coisas, eu vou pra casa mesmo - mesmo sem ter casa, pensei.
Inevitavelmente nós três rimos, um riso nervoso, nem um pouco pacífico, mas enfim, algo em comum, nem que fosse um sorriso.
- Que isso minha gente, tem lugar pra todo mundo lá em casa sim.
- Mas a casa ta bagunçada meu bem.
- A Manuela já é de casa.
- E a mochila dela, ta desarrumada.
- Garanto que a Manuela não se importa de ajudar.
- Mas a Manu deve ta cansada pai, que programa de índio pra ela, arrumar minhas coisas.
- Garanto que ela não se importa, se importa Manu?
Os três voltaram-se para mim. Nos olhos de Amélia via fúria, via o seu cristal quase quebrando, toda aquela falsa felicidade de me ver ali naquele momento, toda a sua simpatia ao falar comigo se quebraria se eu aceitasse. Vi nos olhos de Patrícia medo, e algo indecifrável. Vi nos olhos do seu pai inocência. O que falar num momento desses? Por dentro eu estava rindo daquela situação esquizofrênica.
- Não quero causar problemas - falei desesperada sem saber o que fazer.
- Que bom que ela sabe - resmungo quase inaudível de Amélia.
O pai de Patrícia fingiu não ouvir.
- Não causa problema nenhum, vamos. Pegou a mão de Amélia, e fez sinal para que seguíssemos eles em direção ao carro.
Quem diria, depois de tanto tempo estava indo novamente para a casa de Patrícia.

2 comentários:

Dani Bambace disse...

Texto atrativo!!
parabéns!

Lara disse...

Minha nossa senhora, e agora???
Continua logo please...
Muito bom o conto.